Por Letícia Falcão – Feminista e Ativista Maker • CPO Fab Lab Recife
No dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia do novo coronavírus, colocando milhões de pessoas ao redor do planeta numa quarentena sem precedentes e por tempo indeterminado. Isso afetou nossa saúde, nossa economia, nossas relações, virou o cotidiano da gente de cabeça pra baixo, e assim, de uma hora pra outra. Até agora, um ano depois, a gente continua aprendendo e se readaptando um pouquinho mais, a cada dia. Mas a verdade é que lá no comecinho de 2020 fomos tomados por uma série de estados emocionais e mentais ligados diretamente a um clima global de muita preocupação e ansiedade. Uma pesquisa publicada pela Leo Burnett em maio de 2020 e intitulada “O dia em que a terra parou” – uma alusão à música de Raul Seixas, que segundo o próprio relatório entrou disparada em primeiro lugar para a lista TOP 10 das músicas mais associadas ao momento em que estávamos vivendo – afirmou que 55% da população brasileira àquela época estava dormindo bem mais que o normal, um dado que indica que desanimados, a gente acaba ficando mais letárgico mesmo e propenso ao desligamento. “Se a realidade não nos agrada é comum que a gente procure formas de passar o tempo sem percebê-la”, dizia a pesquisa.
Você deve estar pensando “Nossa, que deprê”… Calma, gente, que tudo isso – além da mais pura e dura realidade pandêmica – é também uma construção narrativa para finalmente dizer: VEM VAMOS EMBORA, QUE ESPERAR NÃO É SABER. QUEM SABE FAZ A HORA, NÃO ESPERA ACONTECER.
E aconteceu. A hashtag #FabDoesNotWait – ou #MakersNãoEsperam na nossa tradução livre – foi a mensagem que o professor do MIT e criador da rede mundial de Fab Labs, Neil Gershenfeld, propagou para toda a rede em março de 2020, numa grande convocatória a Fab Labs e Makers do mundo inteiro a entrarem em ação para atender às necessidades de suas comunidades em resposta R Á P I D A à Covid-19. E porque é tão importante frisar a necessidade de RAPIDEZ nesse conjunto de respostas? Sim, claro, é principalmente porque a gente está falando aqui de soluções que podiam salvar e poupar vidas. Mas também porque muitos especialistas mundo afora afirmavam que a capacidade de resposta da indústria tradicional, naquele momento, ainda era incerta e preocupante. E a gente – e aí quando eu digo a gente, falo como uma ativista maker e também representante de um Fab Lab – a gente ainda não havia se articulado para pensar ou pelo menos planejar em como a fabricação aberta poderia contornar os limites da produção industrial. Por isso, o professor Neil também fez questão de destacar em sua mensagem a importância de termos muito cuidado ao direcionar nossos esforços em soluções que realmente tivessem impacto naquele que era – e ainda é – um problema mundial de saúde pública. Ou seja, o mesmo cenário de tensões e incertezas comentado agora há pouco e que deixou um monte de gente literalmente paralisada diante de suas próprias vidas, se mostrava para um outro grupo de pessoas – a comunidade maker global – como uma grande oportunidade de contribuição no enfrentamento da crise mundial da Covid-19.
Foi aí que, rapidamente, em diferentes partes do planeta, makers dos mais diversos campos de atuação e especialistas de diferentes áreas do conhecimento decidiram se unir e se organizaram, voluntariamente, em diversas frentes de trabalho para tentar evitar o colapso dos sistemas de saúde e ajudar as pessoas que estavam, ali, arriscando a própria vida no primeiro front de combate ao novo coronavírus: profissionais da saúde. O fornecimento de equipamentos de proteção individual às unidades de saúde, os EPIs, cuja demanda vinha crescendo a uma velocidade maior do que a produção industrial podia atender, foi um dos principais focos de atuação dessa grande frente mundial de produção maker em resposta à Covid-19. O primeiro caso a ganhar notoriedade foi o do protetor facial PRUSA RC2, desenvolvido por Joseph Prusa da Prusa Printers em apenas T R Ê S dias, passando por dezenas de protótipos e duas verificações com o Ministério da Saúde da República Tcheca, o país de origem da empresa. Em questão de poucas horas após ser divulgado, o modelo de código aberto já estava sendo replicado por pessoas do mundo inteiro a partir da combinação entre o compartilhamento de dados e máquinas de fabricação digital, como impressoras 3D e cortadoras a laser.
E foi assim que essa grande onda de colaboração maker acabou chegando até aqui, em Recife, mas também aqui, na minha própria história. Eu, assim como aquele pessoal lá do começo da narrativa, que foi tomado por uma grande sensação de impotência e resignação, me encontrava num estado inerte frente ao furacão que passava pela minha janela. Ainda no final de março, fiquei sabendo a partir de um dos gurus makers de impressão 3D do Fab Lab Recife que o Clube do Hardware de Pernambuco estava imprimindo escudos faciais do modelo PRUSA e que o grupo já avançava em testes de um novo modelo, próprio, intitulado HIGIA. Ao mesmo tempo, através das redes de conexão do Fab Lab Recife, vários agentes, entre makers autônomos ou fazedoras independentes e representantes de organizações como o Porto Digital e a Rede E-nable Brasil, foram se chegando, tanto para pedir apoio como também para oferecê-lo. Destaque para a determinação do amigo e parceiro Caio Scheidegger. Nesse momento, a gente percebeu a potencialidade que havia, localmente, para o surgimento de uma grande frente de produção maker de EPIs e que o nosso principal papel nessa história toda seria a articulação institucional dessa ampla REDE DE APOIO. Lançamos, numa parceria entre 16 organizações, no dia 30 de março de 2020, o Movimento Cada Impressão Conta em Pernambuco, que contou com mais de 90 voluntários e voluntárias na linha de produção, beneficiou 80 hospitais e instituições de saúde no Estado e distribuiu gratuitamente quase 30 mil escudos faciais durante 10 semanas de atuação. TRINTA MIL. Em d e z s e m a n a s. Falando assim, no pretérito perfeito, parece até que foi fácil. Mas imagina só as dificuldades enfrentadas para se conseguir realizar um trabalho desses inteiramente à distância, misturando equipes e pessoas que nunca se conheceram, ainda mais num cenário de apocalipse mundial. Sim, o trabalho foi tão duro quanto transformador. A impressão que eu tenho agora, olhando um pouco para trás, é que a seriedade e a urgência de nosso trabalho eram tão grandes naquele momento que todas as partes envolvidas foram tomadas pelo mesmo sentimento de suporte e contribuição. Afinal, diante de uma situação difícil, manter-se positivo – e ativo – é uma defesa importante, pois precisamos seguir no combate. E seguimos.
Mas nada disso teria acontecido não fosse um outro tipo de apoio muito importante. O financeiro. A campanha Cada Impressão Conta conseguiu arrecadar um total de R$ 64.128,00 através de doações individuais e também de captação direta entre empresárias e empresários. E aqui vale ressaltar a participação de um grupo incrível formado por instituições e sociedade civil organizada, que se uniram para aumentar e acelerar a nossa produção de EPIs, com uma doação super importante para o Movimento. O Instituto Me Maker, que realiza um trabalho lindo de formação para jovens e adolescentes da periferia através da tecnologia e da arte – representado aqui por Mônica Bouqvar, a Quarentena Solidária PE, formada por um grupo de amigos e amigas que há mais de 20 anos promove em Pernambuco projetos sociais e ações beneficentes, e o Grupo Mulheres do Bem, uma organização filantrópica que acabava de nascer e já contava com mais de 230 mulheres organizadas para arrecadar recursos e fazer doações a iniciativas de combate à crise da COVID-19. Em poucos dias, esse grupo arrecadou 50 mil reais para o Movimento Cada Impressão Conta, ou seja, representou quase 80% das doações recebidas, e foi parte decisiva para o sucesso de nossa ação. Esse é um dado que eu faço questão de mostrar, não só para agradecer novamente a todas essas iniciativas, mas também para falar sobre a importância do apoio financeiro a tantas ideias e projetos bacanas que existem dentro do universo Maker, principalmente no contexto dos países em desenvolvimento, como o Brasil. Muitas vezes o que falta para esses projetos virarem realidade é justamente esse “empurrão” de grana. E isso também pode acontecer através da auto-organização de pessoas comuns à causa.
Pessoas comuns. Eu, você. Mônica, Caio. Joseph Prusa. Médicos, médicas, técnicos e técnicas de enfermagem. Garis, bombeiros, policiais. Entregadores e Entregadoras. Nerds, cientistas. Fazedores e fazedoras. Gente que faz. Gente comum que faz acontecer. O apoio mútuo é a principal forma de sustentação entre comunidades. E nesse sentido eu gosto muito de citar o caso da antropóloga Margaret Mead, que perguntada por um aluno qual era, para ela, o primeiro vestígio de civilização humana, respondeu “um fémur com 15 mil anos encontrado numa escavação arqueológica”. O fémur estava partido, mas tinha cicatrizado. É um dos maiores ossos do corpo humano e demora seis semanas a curar. Ou seja, alguém tinha cuidado daquela pessoa. Deu abrigo e alimento. Proteção, ao invés de a abandonar à sua sorte”. O que nos distingue, portanto, enquanto civilização é a empatia, a capacidade de nos preocuparmos e apoiarmos uns aos outros. E o Movimento Maker, assim como tantas outras iniciativas que buscam mudanças para o mundo, também precisa de apoio. Por isso, vou fechar esse relato com uma frase extraída do livro The Maker Movement Manifesto, de Mark Hatch, em tradução livre: “Este é um Movimento que precisa de apoio emocional, intelectual, financeiro, político e institucional. O Movimento Maker representa a esperança de mudar o mundo, e todos nós somos responsáveis por fazer um futuro melhor.”
Eu sou Letícia Falcão, ativista maker e sócia do Fab Lab Recife, e espero que você tenha curtido o meu relato #tbt >> 01 ano de pandemia. Lembrando que este conteúdo também está disponível em formato de áudio no perfil do spotify do Canal Maker.
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